Sobre a Liberdade Ainda Que Tam Tam
18 de maio. Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Após cortar o cabelo no Salão Máximo, no edifício Maletta em Belo Horizonte , tento alcançar a outra margem da Avenida Augusto de Lima e tenho minha travessia bloqueada por uma grande marcha. É o desfile da Escola de Samba “Liberdade Ainda Que Tam Tam”.
Através do folheto que recebo de um dos desfilantes, fico sabendo que o desfile da Escola de Samba “Liberdade Ainda Que Tam Tam” se divide em seis alas: palavreadores de Minas, quando a forma delira, ala das crianças: o menino maluquinho, viver é muito arriscoso: carece de coragem, a loucura no horizonte: a conquista de um sonho, e Minas é gerais. Em sua totalidade, a manifestação fala de tudo. Fala de literatura, de artes plásticas, das crianças, dos movimentos sociais ligados à luta antimanicomial, da desconstrução do preconceito e dos serviços que propõem a inclusão da loucura no cotidiano das cidades, e da diversidade cultural de Minas e seu povo. É um espetáculo que impressiona, principalmente pela loucura visual com que se apresenta. Ali vejo desde aqueles que se esforçam para estar presentes também em espírito na manifestação (Noto, pelo olhar distante desses participantes, certa ausência do mundo em que vivemos.) até aqueles abnegados heróis que dedicam sua vida a cuidar com amor dos que sofrem com a insanidade. Crianças também chamam a minha atenção e, como não poderia faltar numa escola de Samba, cabrochas bonitas com pouca roupa também participam do evento. Se elas também eram dementes, caro leitor? Não sei. Não perguntei. Mas posso afirmar-lhe que deviam ser. Afinal, porque alguém não pode ser, ao mesmo tempo, louco e sensual?
Procuro entre os desfilantes algum conhecido. Sim, escandalizado leitor, um conhecido! Por que não um conhecido? Depois de trinta e seis anos de labuta em escolas públicas, muitos dos meus colegas perderam o rumo da razão. Não são poucos os que endoidaram com o barulho da fuzarca diária de crianças sem disciplina nem limites, colocadas às centenas por governantes e tecnocratas irresponsáveis dentro dessas máquinas de fazer doidos chamadas “escolas”. Mas não vi nenhum conhecido. Vi uma moça alegre e bonita com cara de professora, muito parecida com uma colega minha, mas que não podia ser minha antiga colega de trabalho, já que, hoje, a dita professora deve ter a minha idade e a moça, com certeza, não passava dos trinta.
Tive uma vontade danada de participar da passeata e só não o fiz por duas razões. A primeira é que estava com roupas muito sérias. Certamente destoaria no meio daquela multidão vestida de forma desarrazoada. Em segundo lugar, não vivo mais nos anos setenta. Naquela época sim, valia a pena ser maluco. Ser maluco era sinônimo de ser inteligente, questionador, vanguardista. Hoje não vale a pena ser doido. Hoje, quem não está de plenas posses das suas faculdades mentais é discriminado, colocado de lado e, se não ficar coelho, pode até perder o emprego e passar fome. Isto sem dizer que, ao menor sinal de insanidade mental, todos os amigos se afastam e esquecem num canto da vida o pobre infeliz que transpôs aquela porta que separa o mundo dos “normais” do mundo da loucura.
Após passar a passeata, fiquei me lembrando dos amigos que se perderam nos labirintos da insanidade mental e, um dia, de forma induzida ou por mero acidente de percurso, se foram desta vida. Lembrei-me do Demétrio. Foi com o pai dele que aprendi o termo “descompensou”, usado para noticiar a ida de alguém para o mundo da demência. “Ele descompensou”, noticiou-me entristecido o progenitor do meu companheiro dos idos de 68. Pois é. Alguns anos depois, ele se foi. Como tantos outros se foram prematuramente em conseqüência do cruel efeito retardado da tensão e da tortura de que foram vítimas nos anos de chumbo.
Fico feliz quando vejo o Brasil vivendo uma democracia, ao mesmo tempo em que a luta antimanicomial ganha as ruas e cresce cada vez mais. Fico feliz em ver desativados os terríveis manicômios onde pessoas doentes eram tratadas como lixo. Que bom que se aboliu a prática de eletrocutar o pobre portador de distúrbio mental! Apesar de, até hoje, manter-se o hábito de dopar e aplicar o conhecido “sossega-leão” nos pacientes em crise nas alas psiquiátricas dos hospitais, não se pode deixar de admitir que progredimos muito no tratamento dispensado aos nossos doentes mentais.
Temos, porém, que tomar muito cuidado. Toda bandeira de luta desperta radicalismos e interpretações equivocadas. Assim, muitos médicos têm devolvido para as suas famílias portadores de demências que acabam deixando de ser tratados. Muitas famílias abandonam seus entes queridos ao Deus dará, negando-lhes qualquer chance de cura ou de controle das doenças que portam. Morando em hotéis, já testemunhei muitas famílias “internarem” seus parentes, abandonando-os num quarto alugado. Já vi um caso de suicídio em que a família “internou’ seu paciente num hotel e ele se jogou para a morte pela janela do seu quarto. Também já fui amigo de uma poetisa paranóica que desenhava divinamente e que se queixava muito de ter sido abandonada pela família.
É muito triste a situação dos doentes mentais que, vítimas do preconceito secular que acomete os seres humanos ditos “lúcidos”, são abandonados por suas famílias e seus amigos. A solidão de um ser humano entre milhares de pessoas é o caminho mais curto para o agravamento da loucura. Por isso, a luta antimanicomial só será vitoriosa quando, desinibida, feliz e alegre como a Escola de Samba Liberdade Ainda Que Tam Tam, desfilar junto com a luta contra o isolamento a que as sociedades humanas, desde a Antiguidade, condenam seus portadores de insanidade mental.
Luiz Lyrio
Prêmio Destaque no IV Concurso Rubem Braga de Crônicas promovido pela Academia Cachoeirense de Letras (Cachoeiro de Itapemirim – ES)
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